“O paciente está laranja!”
Paciente – Eu estava jogando golfe e senti meu pescoço
travar. Quer dizer: doeu um pouco, mas eu continuei jogando. Na manhã seguinte
eu mal conseguia levantar.
Dr. House – Bem, você está sorrindo, então eu presumo que
significa não ser coisa séria.
House retira do bolso um tubinho de
medicação e toma um comprimido.
Paciente – O que é isso? O que está fazendo?
Dr. House – Analgésicos.
Paciente – Ah! ... para a sua perna.
Dr. House – Não, é porque são saborosos...! Quer um? Vai lhe
fazer sentir as costas melhorarem.
House entraga um comprimido ao paciente, que
o ingere de imediato.
Dr. House – Infelizmente, você tem um problema mais
profundo: “Sua esposa está lhe traindo”.
Paciente – O quê!?
Dr. House – Você está “laranja”, seu imbecil! Isso é uma
coisa para que você note, mas se sua esposa não captou o fato de que seu marido
mudou de cor, ela simplesmente não está prestando atenção!
(...)
A propósito: você consome apenas
uma dose ridícula de cenouras e polivitamínicos. As cenouras deixam você
amarelo. A niacina, vermelho. Pegue umas pinturas a dedo e faça as contas.
... e contrate um bom advogado.
(House MD (2004) – S01E01 – Episódio
Piloto)
A
falta de atenção ao outro não só acaba com casamentos, mas destrói economias e
desencadeia guerras sangrentas. Para que prestar atenção? Ora, a forma mais
profunda de agredir alguém é tratar esta pessoa como se ela não existisse! Com esta
conduta não se está simplesmente comunicando à outra pessoa o quanto ela não
tem valor, está se demonstrando isso de forma evidente e contundente a ela. Em
um ambiente em que nenhuma pessoa presta atenção à outra, as pessoas estão
sempre preocupadas em conseguir o que querem. Parodiando os próprios personagens
de David Shore:
Dr. House - “Bem, como
o filósofo Mick Jagger disse: "Você nem sempre consegue o que quer(...)".
Dra. Lisa Cuddy – “(...) mas
se você tentar, às vezes, você
simplesmente descobre que pode conseguir o que precisa”.
Certo
camarada bem importante do mundo do Marketing
costuma escrever em seus livros acadêmicos que há uma diferença muito bem
definida entre “Necessidade” e “Desejo”. Em sua explicação ele define o
primeiro termo como sendo primário, basicamente um “vazio” que precisa ser
preenchido, mas que não tem forma a
priori. O segundo termo seria aquilo que “possui uma forma que pode se
encaixar” e preencher este “vazio”. Os colegas do Marketing trabalham para criar “desejos”. As “necessidades” já existem nas pessoas
naturalmente.
Nestes
termos tudo soa muito óbvio. Uma pessoa sente sede. Qualquer líquido hidratante
pode suprir esta necessidade. Se o ser humano fosse uma máquina e só precisasse
de uma coisa de cada vez, “água” seria o objeto mais apropriado a oferecer. A
sede é a necessidade. A pessoa desejaria água pura, simplesmente. Porém existe
aquela pergunta prática: “Por que não matar a sede com refrigerante, água de
côco, sucos de fruta etc.?
A
confusão começa neste ponto. O fato é: apenas água hidrata. Quer dizer que
refrigerante “não mata a sede”? Claro que “mata”! Há água no refrigerante! Quem
o bebe estará sempre de alguma forma se hidratando. Deixem-se de lado as
questões de preferências e saúde. Quem quiser substitua refrigerante por água de côco,
chá, isotônicos etc. O exemplo continua valendo. Qual é a necessidade
especificamente? Seria a água? De forma alguma! A resposta apropriada seria “somente
permanecer hidratado”.
Este é o
exemplo mais simples possível e já tem enorme potencial de causar confusão.
Imagine se as necessidades forem mais de uma ao mesmo tempo. Imagine se muitas
delas forem abstratas como “aceitação social”, “autorrealização”, “autoconfiança”,
“expressão pessoal” etc... Sim, coisa realmente começa a ficar complexa no
mundo real.
No dia a dia,
as pessoas sentem suas respectivas necessidades e são estimuladas por diversos
tipos de objetos de desejo. Cada um destes oferece quase sempre o atendimento
de mais de uma dessas ao mesmo tempo. Basta pensar que a “água gelada” num dia
de calor é mais desejada em média que a “água à temperatura ambiente”. Uma
coisa é se hidratar, outra é se “refrescar” – ou “sentir-se reconfortado pelo
frescor”. Identificar as próprias necessidades claramente é muito difícil e já requer
muita prática. Classificá-las e decidir quais delas são as prioritárias é ainda
pior, pois elas mudam conforme o contexto em que se está.
Não há como
influir sobre o que se necessita. Só há escolha quanto ao que se deseja, quanto
ao que se “quer”. Porém, se não há uma identificação precisa das necessidades,
das prioridades entre elas, acaba se reagindo ao estímulo dos objetos de desejo
inadvertidamente. Na prática, é como “sair para comprar pão e voltar para casa com
um bilhete de loteria”. Diz-se muito por aí que “é um problema quando uma
pessoa não sabe o que quer”. Talvez esta crítica esteja mal formulada. Quem
sabe o problema mesmo não seja “a pessoa não ter claro para si mesma o que
precisa”?
Querer é
simples. Basta andar em um Shopping Center.
Basta assistir comerciais de TV. Basta andar nas ruas, ver pessoas, imagens,
estímulos etc. Entretanto, o que é prioritário? O que é mais importante? O que
será importante em breve e em nem tão breve?
As
ações de marketing relativas principalmente à “promoção” estimulam os
consumidores a acreditar que estão levando mais satisfação de necessidades por
menos “preço”. Os colegas da área gostam de chamar isto de “percepção de
valor”. Quem gosta e trabalha com vendas muitas vezes se mostra fiel a ideia de
que todos precisam de tudo em algum momento, bastando para isso se manter
próximo para oferecer o “produto certo”, no local, momento e preço adequados.
Essa maneira de pensar é ótima para quem vende, mas se tomada ao extremo pode
haver um efeito negativo à longo prazo para quem compra.
Não
é simples perceber, compreender, classificar e priorizar as próprias
necessidades. Se fosse simples, não haveria coisas como “dilemas éticos”,
“disputas de egos”, talvez nem mesmo “corações partidos” ou até a palavra
“amor”. É possível ir longe mesmo com essas ideias. Uma pessoa precisa
amadurecer para lidar bem com a variação e instabilidade de suas próprias
necessidades. Esse amadurecimento se dá como qualquer processo de aprendizado:
depende de desafios, ambiência, intenção e prática, muita prática!
O
profissional de Marketing não tem
como e não vai se preocupar jamais com como seu possível cliente gere as
próprias necessidades. Na realidade, se puder, ele mesmo vai determinar o que é
prioritário para você! Nesse momento é que a ação promocional desta área pode executar uma conduta imoral. Basta
imaginar o conto do “João e o pé de feijão”: o menino sai de casa para vender
uma vaca e comprar mantimentos, mas volta com três feijões mágicos. No conto de
fadas os feijões são mágicos e a estória termina com prosperidade e ovos de
ouro. Na vida real, isso se chama “fraude”. Se trocar sua vaca por três feiões
verdes, sua família morre de fome.
Este
exemplo é extremo demais. Não é preciso haver ma fé objetivamente para que o
problema se dê. Suponha-se que uma mulher solteira, com seus 32 anos, bem
sucedida e bonita caminha em um Shopping
Center – mais uma vez – pretendendo comprar um vestido para usar em um
casamento. Ela entra diretamente na loja e, para simplificar a explicação,
começa a analisar o acervo até ser abordada pela vendedora:
Vendedora - Bom dia, posso ajudar?
Consumidora - Sim, gostei desse. Vou experimentar.
Após vestir-se, a vendedora aborda novamente:
Vendedora - A senhora tem muito bom gosto. Este vestido lhe
caiu perfeitamente. É para alguma ocasião especial?
Consumidora - Sim. Vou ao casamento de uma amiga.
Vendedora - Que ótimo! Acredito que a senhora acharia estes
sapatos e este colar perfeitos para combinar com o vestido. Eles compõem nossa
nova coleção. A senhora não acha linda esta combinação? Este ano nossos
estilistas arrasaram.
Consumidora - Sim. Realmente o conjunto é lindo.
Vendedora - Se a senhora desejar levar todo o conjunto,
podemos oferecer condições especiais de pagamento parcelado.
Consumidora - Quanto custa o conjunto e quais são as
condições de pagamento?
A
história termina como qualquer outra normal. A mulher compra vestido, sapatos e
colar, embora só tenha saído para comprar um vestido. Ela agora tem mais um par
de sapatos e mais um colar. Não há problema algum em ter a coleção completa.
Certamente isso atende a um conjunto de necessidades ligadas a aceitação
social, autoconfiança etc., mas será que dentro de um orçamento restrito essas
são de fato as prioridades dela? Será que o dinheiro a mais alocado nas peças
além do vestido não deixou de sê-lo em algo que ela poderia considerar mais
importante?
Neste
momento é que entra o famoso “não saber o que se quer”. Isso sempre será
difícil para qualquer um. No mundo dos negócios, quem não sabe o que deseja “é
ajudado a tomar uma decisão que é boa
para si mesmo”. Muitos entendem esta frase coma a mais pura definição de “venda”.
O que difere isso de manipulação?
Para
que isto não ocorra, quem vende poderia antes ajudar a pessoa a entender o que
“necessita”, antes de lhe apresentar um objeto de desejo. Os profissionais
vendedores dirão que “assim se vende menos e se lucra menos”. Eles têm toda
razão em seu ponto de vista prático, determinista. É realmente fato que a
vendedora poderia ter deixado de vender um colar e um par de sapatos, gerando
menos resultado. Entretanto, a mulher que comprou o conjunto pode vir a se ver
privada de satisfazer uma necessidade mais prioritária em breve, lembrando-se
que poderia ter aberto mão dos itens para os quais tinha alternativas menos
onerosas. Caso a compradora ligue sua frustração futura à capacidade de
influência da vendedora, poderá ficar chateada e não voltar mais à loja. Porém,
até isto é muito improvável! O que acontece na maioria das vezes é a própria
consumidora se autocriticar e continuar vivendo a mesma situação
periodicamente.
No
ponto de vista da loja e do crescimento o negócio, não há argumento contra. É
possível provar matematicamente isto. Manipular o cliente até certo ponto dá
lucro e não influi significativamente em perda de participação de mercado. Entretanto,
a crítica cabe em outro nível: “O da sociedade como um todo”. Se todos os
vendedores de todos os negócios possíveis se preocuparem em ajudar os clientes
a compreender e classificar suas respectivas necessidades, estes vão ser mais
precisos no uso de seus recursos para obter exatamente aquilo que precisam. Isto
significa que todos indistintamente ficarão mais satisfeitos, lembrando que
quem vende também é comprador.
É
absolutamente impraticável este comportamento ser executado espontaneamente por
um negócio que se executa em um mercado competitivo. A forma mais adequada
seria uma regulamentação apropriada das práticas de negócio pelo próprio
governo. Porém, isto seria também deveras complexo. Não haveria leis que
resolvessem ou mesmo que pudessem ser fiscalizadas diretamente em seus
cumprimentos para garantir que o comprador não seja manipulado. A proposta
então a dar seria outra. Uma que sempre ganha adeptos no Brasil: investir em
educação. Não significa alocar verbas simplesmente. O objetivo a alcançar seria
prover o “consumidor” de competências individuais que lhe permitissem contraconduzir
a manipulação que lhe fosse tentada. Significa instruir o consumidor a
questionar e, melhor ainda, a “se” questionar.
Em um ambiente
mercadológico no qual todos que consomem são conscientes no nível idealizado
aqui, os próprios negócios serão obrigados a mudar a forma como se dão. A
mulher solteira de trinta e dois anos começaria perguntando à vendedora “por
que eu preciso desse sapato?”, “ajudando-a a ajudar” sua cliente, não a
realizar uma venda simplesmente. Quem sabe também, um homem de negócios com a
pele cor de laranja não precisasse ir ao médico para ser informado de que sua
esposa estaria lhe traindo.