The Shadow Hunter

The Shadow Hunter
Keep it Simple

terça-feira, 24 de abril de 2012

O abismo entre a sede e o copo d’água


“O paciente está laranja!”

Paciente – Eu estava jogando golfe e senti meu pescoço travar. Quer dizer: doeu um pouco, mas eu continuei jogando. Na manhã seguinte eu mal conseguia levantar.
Dr. House – Bem, você está sorrindo, então eu presumo que significa não ser coisa séria.
House retira do bolso um tubinho de medicação e toma um comprimido.
Paciente – O que é isso? O que está fazendo?
Dr. House – Analgésicos.
Paciente – Ah! ... para a sua perna.
Dr. House – Não, é porque são saborosos...! Quer um? Vai lhe fazer sentir as costas melhorarem.
                House entraga um comprimido ao paciente, que o ingere de imediato.
Dr. House – Infelizmente, você tem um problema mais profundo: “Sua esposa está lhe traindo”.
Paciente – O quê!?  
Dr. House – Você está “laranja”, seu imbecil! Isso é uma coisa para que você note, mas se sua esposa não captou o fato de que seu marido mudou de cor, ela simplesmente não está prestando atenção!
(...)
A propósito: você consome apenas uma dose ridícula de cenouras e polivitamínicos. As cenouras deixam você amarelo. A niacina, vermelho. Pegue umas pinturas a dedo e faça as contas. 
... e contrate um bom advogado.

(House MD (2004) – S01E01 – Episódio Piloto)

                A falta de atenção ao outro não só acaba com casamentos, mas destrói economias e desencadeia guerras sangrentas. Para que prestar atenção? Ora, a forma mais profunda de agredir alguém é tratar esta pessoa como se ela não existisse! Com esta conduta não se está simplesmente comunicando à outra pessoa o quanto ela não tem valor, está se demonstrando isso de forma evidente e contundente a ela. Em um ambiente em que nenhuma pessoa presta atenção à outra, as pessoas estão sempre preocupadas em conseguir o que querem. Parodiando os próprios personagens de David Shore:

Dr. House - “Bem, como o filósofo Mick Jagger disse: "Você nem sempre consegue o que quer(...)".

Dra. Lisa Cuddy – “(...) mas se você tentar, às vezes, você simplesmente descobre que pode conseguir o que precisa”.

                Certo camarada bem importante do mundo do Marketing costuma escrever em seus livros acadêmicos que há uma diferença muito bem definida entre “Necessidade” e “Desejo”. Em sua explicação ele define o primeiro termo como sendo primário, basicamente um “vazio” que precisa ser preenchido, mas que não tem forma a priori. O segundo termo seria aquilo que “possui uma forma que pode se encaixar” e preencher este “vazio”. Os colegas do Marketing trabalham para criar “desejos”.  As “necessidades” já existem nas pessoas naturalmente.
                Nestes termos tudo soa muito óbvio. Uma pessoa sente sede. Qualquer líquido hidratante pode suprir esta necessidade. Se o ser humano fosse uma máquina e só precisasse de uma coisa de cada vez, “água” seria o objeto mais apropriado a oferecer. A sede é a necessidade. A pessoa desejaria água pura, simplesmente. Porém existe aquela pergunta prática: “Por que não matar a sede com refrigerante, água de côco, sucos de fruta etc.?
                A confusão começa neste ponto. O fato é: apenas água hidrata. Quer dizer que refrigerante “não mata a sede”? Claro que “mata”! Há água no refrigerante! Quem o bebe estará sempre de alguma forma se hidratando. Deixem-se de lado as questões de preferências e saúde. Quem quiser substitua refrigerante por água de côco, chá, isotônicos etc. O exemplo continua valendo. Qual é a necessidade especificamente? Seria a água? De forma alguma! A resposta apropriada seria “somente permanecer hidratado”.
Este é o exemplo mais simples possível e já tem enorme potencial de causar confusão. Imagine se as necessidades forem mais de uma ao mesmo tempo. Imagine se muitas delas forem abstratas como “aceitação social”, “autorrealização”, “autoconfiança”, “expressão pessoal” etc... Sim, coisa realmente começa a ficar complexa no mundo real.
No dia a dia, as pessoas sentem suas respectivas necessidades e são estimuladas por diversos tipos de objetos de desejo. Cada um destes oferece quase sempre o atendimento de mais de uma dessas ao mesmo tempo. Basta pensar que a “água gelada” num dia de calor é mais desejada em média que a “água à temperatura ambiente”. Uma coisa é se hidratar, outra é se “refrescar” – ou “sentir-se reconfortado pelo frescor”. Identificar as próprias necessidades claramente é muito difícil e já requer muita prática. Classificá-las e decidir quais delas são as prioritárias é ainda pior, pois elas mudam conforme o contexto em que se está.
Não há como influir sobre o que se necessita. Só há escolha quanto ao que se deseja, quanto ao que se “quer”. Porém, se não há uma identificação precisa das necessidades, das prioridades entre elas, acaba se reagindo ao estímulo dos objetos de desejo inadvertidamente. Na prática, é como “sair para comprar pão e voltar para casa com um bilhete de loteria”. Diz-se muito por aí que “é um problema quando uma pessoa não sabe o que quer”. Talvez esta crítica esteja mal formulada. Quem sabe o problema mesmo não seja “a pessoa não ter claro para si mesma o que precisa”?
Querer é simples. Basta andar em um Shopping Center. Basta assistir comerciais de TV. Basta andar nas ruas, ver pessoas, imagens, estímulos etc. Entretanto, o que é prioritário? O que é mais importante? O que será importante em breve e em nem tão breve?
                As ações de marketing relativas principalmente à “promoção” estimulam os consumidores a acreditar que estão levando mais satisfação de necessidades por menos “preço”. Os colegas da área gostam de chamar isto de “percepção de valor”. Quem gosta e trabalha com vendas muitas vezes se mostra fiel a ideia de que todos precisam de tudo em algum momento, bastando para isso se manter próximo para oferecer o “produto certo”, no local, momento e preço adequados. Essa maneira de pensar é ótima para quem vende, mas se tomada ao extremo pode haver um efeito negativo à longo prazo para quem compra.
                Não é simples perceber, compreender, classificar e priorizar as próprias necessidades. Se fosse simples, não haveria coisas como “dilemas éticos”, “disputas de egos”, talvez nem mesmo “corações partidos” ou até a palavra “amor”. É possível ir longe mesmo com essas ideias. Uma pessoa precisa amadurecer para lidar bem com a variação e instabilidade de suas próprias necessidades. Esse amadurecimento se dá como qualquer processo de aprendizado: depende de desafios, ambiência, intenção e prática, muita prática!
                O profissional de Marketing não tem como e não vai se preocupar jamais com como seu possível cliente gere as próprias necessidades. Na realidade, se puder, ele mesmo vai determinar o que é prioritário para você! Nesse momento é que a ação promocional desta área pode executar uma conduta imoral. Basta imaginar o conto do “João e o pé de feijão”: o menino sai de casa para vender uma vaca e comprar mantimentos, mas volta com três feijões mágicos. No conto de fadas os feijões são mágicos e a estória termina com prosperidade e ovos de ouro. Na vida real, isso se chama “fraude”. Se trocar sua vaca por três feiões verdes, sua família morre de fome.
                Este exemplo é extremo demais. Não é preciso haver ma fé objetivamente para que o problema se dê. Suponha-se que uma mulher solteira, com seus 32 anos, bem sucedida e bonita caminha em um Shopping Center – mais uma vez – pretendendo comprar um vestido para usar em um casamento. Ela entra diretamente na loja e, para simplificar a explicação, começa a analisar o acervo até ser abordada pela vendedora:
Vendedora - Bom dia, posso ajudar?
Consumidora - Sim, gostei desse. Vou experimentar.
Após vestir-se, a vendedora aborda novamente:
Vendedora - A senhora tem muito bom gosto. Este vestido lhe caiu perfeitamente. É para alguma ocasião especial?
Consumidora - Sim. Vou ao casamento de uma amiga.
Vendedora - Que ótimo! Acredito que a senhora acharia estes sapatos e este colar perfeitos para combinar com o vestido. Eles compõem nossa nova coleção. A senhora não acha linda esta combinação? Este ano nossos estilistas arrasaram.
Consumidora - Sim. Realmente o conjunto é lindo.
Vendedora - Se a senhora desejar levar todo o conjunto, podemos oferecer condições especiais de pagamento parcelado.
Consumidora - Quanto custa o conjunto e quais são as condições de pagamento?
                A história termina como qualquer outra normal. A mulher compra vestido, sapatos e colar, embora só tenha saído para comprar um vestido. Ela agora tem mais um par de sapatos e mais um colar. Não há problema algum em ter a coleção completa. Certamente isso atende a um conjunto de necessidades ligadas a aceitação social, autoconfiança etc., mas será que dentro de um orçamento restrito essas são de fato as prioridades dela? Será que o dinheiro a mais alocado nas peças além do vestido não deixou de sê-lo em algo que ela poderia considerar mais importante?
                Neste momento é que entra o famoso “não saber o que se quer”. Isso sempre será difícil para qualquer um. No mundo dos negócios, quem não sabe o que deseja “é ajudado a tomar uma decisão que é boa para si mesmo”. Muitos entendem esta frase coma a mais pura definição de “venda”. O que difere isso de manipulação?
                Para que isto não ocorra, quem vende poderia antes ajudar a pessoa a entender o que “necessita”, antes de lhe apresentar um objeto de desejo. Os profissionais vendedores dirão que “assim se vende menos e se lucra menos”. Eles têm toda razão em seu ponto de vista prático, determinista. É realmente fato que a vendedora poderia ter deixado de vender um colar e um par de sapatos, gerando menos resultado. Entretanto, a mulher que comprou o conjunto pode vir a se ver privada de satisfazer uma necessidade mais prioritária em breve, lembrando-se que poderia ter aberto mão dos itens para os quais tinha alternativas menos onerosas. Caso a compradora ligue sua frustração futura à capacidade de influência da vendedora, poderá ficar chateada e não voltar mais à loja. Porém, até isto é muito improvável! O que acontece na maioria das vezes é a própria consumidora se autocriticar e continuar vivendo a mesma situação periodicamente.
                No ponto de vista da loja e do crescimento o negócio, não há argumento contra. É possível provar matematicamente isto. Manipular o cliente até certo ponto dá lucro e não influi significativamente em perda de participação de mercado. Entretanto, a crítica cabe em outro nível: “O da sociedade como um todo”. Se todos os vendedores de todos os negócios possíveis se preocuparem em ajudar os clientes a compreender e classificar suas respectivas necessidades, estes vão ser mais precisos no uso de seus recursos para obter exatamente aquilo que precisam. Isto significa que todos indistintamente ficarão mais satisfeitos, lembrando que quem vende também é comprador.
                É absolutamente impraticável este comportamento ser executado espontaneamente por um negócio que se executa em um mercado competitivo. A forma mais adequada seria uma regulamentação apropriada das práticas de negócio pelo próprio governo. Porém, isto seria também deveras complexo. Não haveria leis que resolvessem ou mesmo que pudessem ser fiscalizadas diretamente em seus cumprimentos para garantir que o comprador não seja manipulado. A proposta então a dar seria outra. Uma que sempre ganha adeptos no Brasil: investir em educação. Não significa alocar verbas simplesmente. O objetivo a alcançar seria prover o “consumidor” de competências individuais que lhe permitissem contraconduzir a manipulação que lhe fosse tentada. Significa instruir o consumidor a questionar e, melhor ainda, a “se” questionar.
Em um ambiente mercadológico no qual todos que consomem são conscientes no nível idealizado aqui, os próprios negócios serão obrigados a mudar a forma como se dão. A mulher solteira de trinta e dois anos começaria perguntando à vendedora “por que eu preciso desse sapato?”, “ajudando-a a ajudar” sua cliente, não a realizar uma venda simplesmente. Quem sabe também, um homem de negócios com a pele cor de laranja não precisasse ir ao médico para ser informado de que sua esposa estaria lhe traindo. 



Nenhum comentário: